Hollywood, em sua Era Dourada, possuía um lado no mínimo interessante: a mesma Hollywood que jogava grandes artistas para escanteio em prol de novos talentos e de novas exigências, resgatava alguns e criava verdadeiras obras-primas. Provavelmente o exemplo mor do que acabei de afirmar se encontra no maior filme de Billy Wilder, "Crepúsculo dos Deuses", onde temos uma grande atriz do cinema mudo, Gloria Swanson, que interpreta uma personagem também atriz, da fase muda e que é, como sua intérprete, jogada para escanteio, a inesquecível aloprada Norma Desmond. O mesmo acontece com a obra aqui em questão, "O Que Terá Acontecido a Baby Jane?", que traz duas grandes atrizes, Bette Davis e Joan Crawford que, na época que o filme foi realizado, já não possuíam a glória de outrora.
O filme conta a história de duas irmãs, Baby Jane (Davis) e Blanche Hudson (Crawford) que vivem em uma mansão em Hollywood. Baby Jane foi uma grande estrela mirim e mais tarde tentou carreira no cinema, mas ao contrário do seu sucesso quando criança como cantora e dançarina, não conseguiu emplacar como atriz. Já sua irmã, que não conhecia os louros do sucesso na infância, se tornou uma grande atriz, para a frustração de Jane. Após um trágico acidente, Blanche encerra sua carreira presa numa carreira de rodas aos 'cuidados' da irmã, que envelheceu completamente infeliz, amargurada e psicótica.
A obra de Robert Aldrich é um suspense psicológico de primeira categoria, com tantas características positivas que as pequenas falhas quase não valem a pena ser citadas. Após mostrar, ainda antes dos créditos iniciais, a ascensão de Baby Jane como performista mirim, seu fracasso como atriz contrapondo o sucesso da irmã, e o trágico e misterioso acidente envolvendo as irmãs, somos jogados para dentro da mansão em Hollywood, já no começo dos anos 60 - a época em questão será um fator importante a ser avaliado mais tarde -, onde presenciaremos o desenrolar de uma relação de ódio e rancor.
O primeiro contato que temos com Baby Jane depois dos passar dos anos é chocante, bem diferente da delicada, porém mimada, menina que nos é apresentada no começo da projeção, Baby Jane agora é uma caricatura de si mesma, mantendo as vestes que usava no passado, com direito a babadinhos e laços nos cabelos loiros e secos desgrenhados, o rosto lotado de maquilagem (a brancura excessiva em contraste com o forte lápis preto nos olhos e o batom, juntamente com as marcas do tempo, criam uma imagem quase que icônica), as roupas, quase sempre completamente brancas, conferem a personagem um aspecto fantasmagórico (é fácil lembrar-se de Blanche DuBois, a desequilibrada professora de inglês interpretada divinamente por Vivien Leigh no clássico “Uma Rua Chamada Pecado“), e com trejeitos completamente debochados (essa característica já vinda da própria Bette Davis). É de imediato a compreensão do espectador de estar diante de uma figura ameaçadora, mas ao mesmo tempo digna de pena. Já Blanche, que passa a maior parte do tempo em seu quarto vendo seus filmes constantemente reprisados por um canal de TV, é a imagem da razão e sanidade, ainda que o tempo e os acontecimentos pelo qual passou o tenham deixada com um aspecto visivelmente cansado.
Ambas vivem do passado. Blanche é refém da própria da irmã, todas as suas necessidades básicas precisam ser supridas por Baby Jane, que vê na irmã inválida a oportunidade de se vingar pelo seu fracasso como atriz. Assim sendo, Jane inferniza Blanche das formas mais mesquinhas possíveis, como colocando um rato e um pássaro mortos sob a tampa da bandeja de comida, ou jogando fora todas as cartas dos fãs que chegam para Blanche, seu único vínculo com o passado dourado. Blanche se lembra de seu estrelato através dos filmes, já Jane está completamente ligada a um passado ainda mais remoto, de quando era a estrela do vaudeville, na mansão estão espalhadas quadros e bonecas dessa época, além da patética caracterização já comentada.
Alguns paralelos podem ser feitos entre a obra de Aldrich e a obra-prima de Wilder. A mais evidente de todas é o esquecimento de um grande astro por uma sociedade que a todo o momento pede por mudanças, esse astro passa então a viver em um mundo à parte, quase sem nenhum contato com o exterior. Provavelmente Norma Desmond e Baby Jane Hudson, a primeira em um grau muito maior, desprezam aqueles que um dia as deram oportunidades, apesar da tentativa de ambas de voltar para o show business, Norma através de um fracassado roteirista, e Baby Jane através de um compositor de aspecto bisonho nada promissor. Diferente de Baby Jane, Desmond não vira uma figura cômica, ela mantém a elegância apesar das vestes já estarem um pouco ultrapassadas, entretanto ambas se auto-veneram, a personagem de Wilder espalha por su
a mansão fotos da juventude no auge e assiste a seus filmes mudos em seu cinema particular; Jane também tem algumas fotos de sua beleza jovem exótica, mas como sua carreira de atriz não angariou muitos frutos, o que prevalece mesmo são os quadros e as fotos da pequena estrela que fora um dia. Há também, nos dois filmes, um assassinato à sangue frio, que parece ser uma atitude inevitável quando se trata de alguém psicótico que vê sua vida afundando cada vez mais.
Fazendo jus ao gênero em que se enquadra, o filme tem um desenvolvimento lento no primeiro ato, porém à medida que Baby Jane vai se tornando cada vez mais psicótica devido aos acontecimentos que se seguem, como a descoberta que sua irmã pretende vender a casa e depois interná-la, o ritmo se acelera e o espectador se sente cada vez mais envolvido. Sentimos aquele frio na barriga e a inquietação que surgem com cenas aterrorizantes, como as atitudes desesperadas de Blanche por alguma ajuda exterior - do médico da família, da empregada ou da vizinha - que são sempre frustradas pela infeliz aparição da irmã, com cortes de câmeras assustadores voltados para o rosto macabro de Bette Davis. Algumas ‘falhas’ podem ser identificadas quanto à aparente aquiescência de Blanche de se manter como vítima, pelo fato de seu quarto estar bem perto do jardim da vizinha. Sendo assim, quando a situação começa a passar dos limites, Blanche poderia muito bem berrar por socorro, mas se formos pensar por outro lado, além da óbvia fuga da realidade que o filme faz uso para poder se manter, podemos enxergar na personagem de Crawford um sentimento de pena e de carinho em relação à irmã (sentimento esse satisfatoriamente justificado na revelação bombástica ao final da película), ela então prefere deixar a situação como está e torcer pela recuperação da sanidade de Jane.
Bette Davis e Joan Crawford se odiavam na vida real, alguns apontam que Bette Davis era ressentida pelo modo que Joan tinha se tornado uma estrela, Davis teria dito que "Joan Crawford teria dormido com todos os astros da MGM, exceto a Lassie", mas qualquer que fosse as razões, esse rancor só serviu para realçar a carga real do filme. Entretanto é claro que mesmo se as duas fossem amigas do peito, as atuações não poderiam ter sido menos que extraordinárias, afinal, estamos falando de dois gigantes de Hollywood. Joan Crawford consegue transmitir espantosamente o desespero de Blanche ante as situações humilhantes, principalmente através de seu olhar, e Bette Davis vai do cômico ao trágico e da delicadeza a crueldade com uma fluidez e naturalismo impressionantes, as cenas em que canta a triste canção “I’ve Written a Letter to Daddy” despertam no espectador uma mistura de pena com repugnância, e tira-nos um riso culpado quando imita Blanche ao telefone esbugalhando os enormes olhos como uma louca varrida. O elenco coadjuvante também tem seu destaque, principalmente Victor Buono, que interpreta o compositor Edwin Flagg, sua relação com Jane não é completamente clara, às vezes temos a impressão que ele só está interessado mesmo no dinheiro, mas às vezes temos a sensação que há uma atração sexual bizarra e inesperada por parte do músico. O filme também mostra bem a relação nada harmoniosa de Edwin com sua mãe, apesar de pouco tempo na tela.
Lá no começo eu comentei sobre o período em que a história se passa. A Era Dourada de Hollywood já mostrava desgaste no início dos anos 60, perdendo completamente sua força ao final dessa década. Nos anos 70 as produções americanas sofreriam uma reviravolta imensa, com produções mais realistas e se focando em pessoas ordinárias, com o qual o espectador poderia facilmente se identificar. O prelúdio dessa fase tinha surgido com rostos como os de Marlon Brando e James Dean, chamados de 'novos ídolos', apesar de vários atores da mesma época terem continuado a tradição do glamour hollywoodiano, como Elizabeth Taylor e Ava Gardner. No caso de Bette Davis, a atriz não gozava de tanto prestígio por parte dos produtores e diretores já no início dos anos 50, sua carreira fora resgatada em "A Malvada", mas ela não tinha sido sequer a primeira opção para o papel de Margo Channing. Joan Crawford já representava o glamour do passado na década de 50, e no começo da mesma fez uma equivocada declaração: "Não acredito que queiram ir ao cinema para ver alguém que podem ver na rua", referindo-se obviamente a esses novos ídolos. A cena final, na praia, mostra perfeitamente o deslocamento das duas atrizes/personagens, diante da música frenética típica dos anos 60 tocada no rádio e dos jovens na praia com um visual que marcaria a época.
A trilha sonora não é marcante, mas seria um fator desnecessário, não estamos falando de um filme de Hitchcock, onde a trilha sonora exerce um papel quase que fundamental para o impacto de seus melhores filmes (o que seria a cena mais famosa de "Psicose" sem a trilha sonora?), em "Baby Jane" o desenrolar da história por si só já é o suficiente, mas obviamente apoiado por excelentes atuações. “O Que Terá Acontecido a Baby Jane” foi realizado com um orçamento baixo e com duas atrizes que já estavam virando história. Aldrich realizou um trabalho primoroso e produziu um dos melhores suspenses psicológicos da cinematografia americana, mesclando drama, humor negro e suspense. Era Hollywood fazendo uma leitura de si mesma, e com um primor inigualável.